Thursday, August 25, 2011

HINDUÍSMO E CULTURA VÉDICA



Cenário Básico – A Geografia Sagrada

Há perto de um bilhão de hindus, em todo o mundo. Uma gigantesca massa de
seguidores para uma religião que não tem um fundador, não tem hierarquia ou
organização institucional, nem tampouco dispõe de um porta-voz oficial. É uma religião
extremamente democrática, pois a sua sustentação vem do conjunto de seus
praticantes, e não de um indivíduo ou de um grupo em particular. A força do Hinduísmo
não surge das qualidades especiais de uma determinada pessoa, mas sim da
reafirmação da capacidade de pessoas comuns protegerem a tradição dentro de suas
famílias (sejam elas a família de sangue ou a linhagem espiritual).
Em tese, é uma religião que teria tudo para conquistar o coração de povos do mundo
inteiro. No entanto, 94 de cada 100 hindus vivem dentro do território indiano. Parece
que é difícil praticar o Hinduísmo fora da Índia, talvez por ser uma cultura em grande
medida vinculada às características físicas do território indiano. A geografia da Índia
deixou certas marcas que se tornaram inseparáveis da cultura hindu. É quase
impossível imaginar o Hinduísmo sem as águas sagradas do rio Ganges ou sem as
neves eternas dos Himalaias. A razão para esses vínculos tão fortes com a terra talvez
tenha sido o relativo isolamento de que as civilizações da Índia desfrutaram num
passado remoto.
O hindu credita sua cultura a ancestrais que viveram num território protegido por
barreiras geográficas quase intransponíveis. Ao norte, a mais elevada cadeia de
montanhas de todo o mundo, a cordilheira dos Himalaias, percorre quase toda a
extensão da fronteira do subcontinente indiano com o resto da Ásia. As montanhas do
Noroeste, que se elevam ao longo do que hoje é a fronteira entre o Paquistão e o
Afeganistão, deixam apenas uma estreita passagem para o planalto Iraniano, pelo vale
do rio Cabul. A leste e ao sul se estende o Oceano Índico com um regime de correntes
marítimas fortes que produz o fenômeno das monções, e algumas das localidades com
maior índice pluviométrico do planeta. A oeste o Mar da Arábia, com suas ondas
desencontradas, que ainda hoje fazem os grandes petroleiros evitarem sua travessia.
Cortado ao meio pelos montes Vindhya e pelo vale do rio Narmada (ou Narbada), o
subcontinente se divide internamente em Hindustão, ao norte, onde se alojam as
bacias hidrográficas do Indo e do Ganges, e Decão, ao sul, onde se abrigaram, bem
protegidas, as formas culturais mais antigas que se integraram ao corpo do Hinduísmo.
Num artigo intitulado “o cenário geográfico da Cultura da Índia”, o professor Nirmal
Kumar Bose, da Universidade de Calcutá, compara o destino do Egito e da
Mesopotâmia, sempre sujeitos a invasões por todos os seus quadrantes, ao isolamento
natural que permitiu à Índia manter sua integridade cultural ao longo de incontáveis
séculos. E depois, tratando das características peculiares ao desenvolvimento cultural
de regiões diversas do subcontinente, ele ilustra a maneira como a geografia pode ser
determinante para o desenvolvimento de uma civilização: “No fértil vale do Ganges, por
exemplo, que proveu subsistência de baixo custo, sem esforço, uma vida de facilidades
estimulou a busca intelectual e a natureza favoreceu a especulação filosófica,
resultando no crescimento da arte, literatura e filosofia.”
No entanto, esse isolamento, ao mesmo tempo que dificultava a incursão de
populações hostis, única ameaça possível à integridade do Hinduísmo, produziu o
sentimento de que o mundo inteiro se reduzia àquele território. O professor Bose opina
que essa foi a razão pela qual a idéia de lutar por uma soberania universal foi
estimulada em reis e príncipes locais, produzindo intensos embates internos na História
da Índia. Essa fantasia também transpôs a barreira da política e se manifestou em
mitos, que faziam o deus Indra disputar com demônios a soberania sobre os três
mundos (terra, atmosfera e céu). E mesmo alguns personagens místicos da História,
como Siddharta Gautama, o Buda, foram chamados de “soberanos universais”.
Talvez em razão do crescimento desse conceito de soberania universal, a população
hindu acabou por construir uma imagem do Universo que era um reflexo perfeito de
seu território. Rios e montanhas formam o cenário predileto dos deuses hindus, e os
personagens divinos não apenas se movimentam por essas paisagens, mas em certos
momentos efetivamente se convertem nelas. É assim que a deusa Ganga desce dos
céus em forma de uma poderosa torrente de água, atendendo ao pedido do sábio
Bhagirata, que com isso espera purificar os restos calcinados de seus ancestrais.
Também o poderoso Himalaia, personificando as montanhas da cordilheira, dá sua filha
parvati (uma montanha) para que seja esposa de Shiva, o deus yogui. A idéia da
sacralidade da montanha também está expressa no fato de que as cúpulas dos
templos hindus são chamadas de Shikhara, ou seja, “pico”.
Em outro mito relatado no épico Mahabharata, o deus Shiva quer evitar o contato com
os irmãos pandavas, e se transforma num touro dotado de uma grande corcova. No
entanto seu tamanho descomunal o denuncia, e, descoberto, ele afunda na terra, onde
hoje se localiza o templo de Kedarnath, convertendo-se no próprio solo. Algumas
partes de seu corpo, no entanto, reaparecem na superfície, na forma de pedras
sagradas (lingam) que hoje marcam cinco locais de peregrinação do Hinduísmo.
O Hinduísmo tem uma forte relação com as águas que atravessam seu território. Uma
das imagens mais vívidas do imaginário hindu é o território de origem, que retrata uma
paisagem real, que hoje se localiza no Tibete. Trata-se do Monte Kailasa e, próximo a
ele, o lago Manasarovar. Essa é a paisagem da residência do deus Shiva. Mas é
também o lugar onde vive um cisne solitário chamado Kalahamsa (o “cisne da
eternidade”). Essa ave extraordinária voa periodicamente do alto do Kailasa até o lago,
onde se banha e mata sua sede, para depois retornar e repousar sobre a mesma
montanha. Esse vôo marca os ciclos de criação e repouso, no Universo. É de um ovo
desse pássaro que Brahma cria todos os mundos.
O lago Manasarovar, tocado pelo Kalahamsa, se torna uma fonte de águas que podem
conceder a imortalidade. Se diz que de suas águas se formam as fontes de importantes
rios do Hinduísmo: o Indo, o Yamuna, o Ganges e o Brahmaputra. As águas do mítico
rio Sarasvati provêm também desse mesmo lago, e hoje estariam fluindo sob a terra e
emergindo em Allahabad (Prayag) na confluência dos rios Ganges e Yamuna – lugar
onde se realiza a cada doze anos o maior festival religioso da Índia, o Kumbha Mela
(que em sua última edição, em 1998, reuniu nada menos que 70 milhões de devotos).
Por fim, se por um lado a imaginação hindu se lança à paisagem e reconstrói a
geografia, dando a ela um sentido sagrado e solene, por outro lado, dentro da tradição
shramânica, é a paisagem que escapa de sua posição e penetra no corpo humano,
desafiando o indivíduo a conquistar a soberania sobre o mundo interior. Essa
transformação conceitual do corpo humano, que o converte em microcosmo, se torna
uma das marcas características do movimento tântrico, em especial pelas mãos dos
intelectuais Nathas. A teoria natha sobre o corpo humano como miniatura do Universo
dá a base teórica para o Hatha Yoga – a mais conhecida forma pela qual o Hinduísmo
se desenvolve fora da própria Índia.

A Civilização Afônica

Quando Sir John Marshall encontrou em 1921 os primeiros selos contendo pictogramas
no sítio de Harappa, região do vale do rio Indo (atual Paquistão), ninguém imaginava
que pudessem ser os restos de uma civilização bastante desenvolvida, contemporânea
dos sumerianos e que talvez tenha rivalizado com eles em inteligência urbanística. Mas
uma vez que, com a continuação das escavações, se acumulavam dezenas (e depois
centenas) de objetos com pictogramas grafados, ficou fácil acreditar que em pouco
tempo se decifraria sua linguagem, e que os antigos habitantes do vale falariam
conosco através de sua própria literatura.
A decifração, no entanto, jamais aconteceu, e tudo o que os arqueólogos conseguiram
foi reunir uma imensa quantidade de restos “afônicos” de uma civilização sem língua
nem literatura conhecidas. Batizada por Marshall como “Civilização do Vale do Indo”,
seu alcance geográfico cresceu junto com o progresso das escavações, e hoje se sabe
que seus limites do lado leste iam do Gujarate até o rio Yamuna, e que se estendia a
oeste para regiões dentro do atual Afeganistão.
O período dessa civilização foi estimado, a partir de escavações da década de 50,
como tendo se estendido de 3300 a.e.c. até 1800 a.e.c., aproximadamente. A
localização dos restos dessa civilização se sobrepõe, em parte, às regiões reclamadas
como território sagrado pela civilização védica. Ali teria fluido, por exemplo, o mítico rio
Sarasvati, em cujas margens os inspirados poetas brahmanes compuseram alguns dos
hinos mais antigos do Rig Veda. Por essa razão, autores como Dr. S. Kalyanaraman
(um economista de Chennai que se especializou no estudo da História Antiga da Índia)
têm preferido chamá-la pelo nome de Civilização do Sarasvati-Indo.
O rio Sarasvati é um detalhe importante no estudo da Civilização do Vale do Indo.
Quando os acadêmicos europeus do século XIX estudaram o conteúdo do Rig Veda,
encontraram insistente menção ao rio Sarasvati, como um rio sagrado junto ao qual os
brahmanes haviam decidido estabelecer seus aldeamentos. Sentados às suas
margens, e inspirados pela ingestão da bebida sagrada, o Soma, durante os rituais de
sacrifício, eles teriam composto uma parcela significativa dos hinos do Rig Veda. Como
não havia sinais físicos da existência desse rio, acreditou-se que se tratava de uma
lenda ou uma criação mítica.
Nos anos 70, as imagens do satélite Landsat permitiram identificar o antigo leito seco
de um rio que havia existido em áreas hoje desérticas do Rajastão e do Gujarat, e que
parecia se encaixar perfeitamente na descrição do rio Sarasvati. Levantamentos de
campo permitiram estimar que esse rio existira até cerca de 1800 a.e.c., tendo secado
gradualmente a partir de cerca de duzentos anos antes. Por se tratar de área de
atividade sísmica intensa, acredita-se que tenha havido modificações na topografia em
decorrência de movimentos de placa tectônica, o que teria feito as águas que vertiam
para aquele rio se deslocarem para a bacia do rio Yamuna.
O desaparecimento desse rio coincide com a época de desaparecimento da Civilização
do Vale do Indo. A literatura védica retrata o rio Sarasvati como um rio caudaloso e de
travessia difícil – característica compatível com a análise dos dados coletados pelo
satélite.
Enquanto os sítios arqueológicos ao longo da extinta bacia do rio Sarasvati revelavam
muitos aldeamentos simples, o vale do rio Indo trazia à luz ruínas de grandes cidades,
como Harappa e Mohenjo Daro. Essas cidades eram orientadas pelos pontos cardeais,
e aparentemente tinham suas construções agrupadas por segmento de atividade. As
edificações eram construídas com tijolos e podiam ter três ou quatro pavimentos com
piso de madeira. Um fato curioso é que a água que servia à cidade era coletada rio
acima e conduzida para distribuição aos seus habitantes por meio de canaletas
cobertas, e depois de servida era levada para a parte mais baixa do rio por canaletas
também cobertas, com cerca de sessenta centímetros de profundidade. Sem dúvida
esses eram sinais de sofisticação inesperados para essa parte do planeta.
O senso de organização urbanística era bastante desenvolvido nessa civilização.
Sabemos também que o touro aparecia representado em muitos dos objetos
encontrados em suas ruínas, e que provavelmente ela mantinha contato comercial com
os Sumerianos (que vinham buscar metais nas minas da região) e também se
relacionava com tribos e povoações de outras regiões da Índia. Em sua fase terminal,
encontramos indicações de que nas áreas mais próximas da bacia do Yamuna e do
Ganges esse povo já praticava a cremação de seus mortos e produzia cerâmica similar
à que se encontra em períodos mais recentes, em culturas diretamente conectadas ao
Hinduísmo.
É plausível imaginar que houve uma forte conexão entre os povos védicos e os povos
do Vale do Indo. Mas o modo como se dava essa relação, no entanto, é objeto de uma
certa polêmica. Há quem defenda que os povos védicos eram os próprios habitantes do
Vale do Indo e do Sarasvati, e que as duas culturas eram uma só. O norte-americano
David Frawley, por exemplo, defende essa hipótese, tomando como indício principal o
fato de que temos aqui uma civilização com restos arqueológicos, mas que não tem
literatura, e uma outra civilização, a védica, com uma extensa literatura e nenhum resto
arqueológico.
Mas há acadêmicos optam por tomar a defesa da Teoria da Invasão Ariana, segundo a
qual povos de pele clara de cultura indo-européia teriam invadido a Índia por volta de
1500 a.e.c. e teriam escravizado os nativos de pele escura, destruindo assim a
Civilização do Vale do Indo. Esta hipótese de um conflito étnico tem sido gradualmente
abandonada pelos pesquisadores acadêmicos, embora ainda seja defendida com
entusiasmo por pesquisadores como Michael Witzel, da Universidade de Harvard, uma
das mais tradicionais instituições de ensino superior dos Estados Unidos.
A tese que vem ganhando terreno dentro desse debate propõe que tenha havido
migrações e convivência de povos diversos no noroeste do subcontinente indiano, e
que o intercâmbio desses povos teria sido a semente da futura civilização védica. Os
povos do Vale do Indo possivelmente se serviram dos criadores de gado indo-europeus
(falantes da língua védica) convidando-os para trazer seu gado para comer a palha de
suas colheitas – especialmente da cevada – deixando como pagamento o estrume do
gado, que fertilizaria a terra para a semeadura seguinte. Essa “simbiose” de culturas
distintas foi sugerida pela historiadora indiana Romila Thapar, e tem ganhado um
número progressivamente maior de adeptos entre os historiadores.
Essas famílias de criadores de gado, assentadas em aldeamentos nas franjas
exteriores da Civilização do Vale do Indo seriam posteriormente identificadas como
elementos formadores de clãs sacerdotais que receberam o nome de “brâhmanes”. E é
possível que tenham aprendido dos povos do vale do Indo a habilidade na execução
dos rituais e o gosto pelo uso da palavra e da poesia.
As evidências são frágeis, quando se trata de períodos tão recuados no tempo, e uma
reconstituição aceitável do que realmente teria acontecido por ali há quatro ou cinco mil
anos talvez demande um longo tempo de escavações e debates entre arqueólogos e
historiadores. No entanto a possibilidade de que tenha havido uma convivência
relativamente pacífica e uma gradual integração entre os diversos povos que viveram
na bacia do Indo parece bastante compatível com as características do Hinduísmo em
sua fase védica. O bastante para que possa ser considerada verossímil. Se esta tese
estiver correta, teriam surgido aí algumas das marcas características que perduram no
Hinduísmo até hoje, e isso daria uma boa razão às vozes que declaram que o
Hinduísmo é a mais antiga das religiões existentes.

Ligados à Natureza

A Civilização Védica é conhecida apenas por meio de sua literatura, pois não deixou
ruínas ou restos materiais conhecidos. Os védicos chamavam a si mesmos de “o povo”
e sua língua era apenas “a língua”. O nome pelo qual essa civilização é conhecida saiu
do título dado aos seus livros mais sagrados (os Vedas), dos quais o mais antigo é o
Rig Veda. A palavra “veda” significa apenas “o que se conhece”.
A simplicidade da vida e dos valores dos povos védicos, tal como se revela em sua
literatura, sugere que eram comunidades bastante integradas à natureza de seu
entorno, o que deu a eles um perfil marcadamente espiritualizado.
Essa literatura revela também algumas características da rotina diária dos povos
védicos. Os hinos mencionam o leite, a coalhada, a manteiga clarificada, a cevada, o
arroz e o mel, entre os mais importantes alimentos que são oferecidos aos deuses.
Também há referências aos aldeamentos (vish) onde residem os artífices (vaishyas),
sugerindo uma estrutura “urbana” bastante simples e funcional. Sobretudo os hinos
védicos apontam para uma ordem social baseada em princípios morais, que constituem
a base conceitual do Hinduísmo, ou seja, o Dharma.
Os textos védicos descrevem um povo que enxergava a Natureza com um olhar
benigno, e que procurava viver num ambiente de sacralidade. Os deuses eram
relativamente abstratos (não há descrições detalhadas de sua aparência) e
representavam as forças naturais de três mundos – a terra, a atmosfera e o céu. Cada
fenômeno natural era reinterpretado como a manifestação inteligente desses deuses
naturalistas. O papel do indivíduo humano era o de se inserir ativamente na vida
desses deuses, através da prática do ritual, de maneira a contribuir para a preservação
da ordem natural. Essa ordenação ritual da vida que afetava deuses e homens era
chamada Dharma.
Os deuses representavam as grandes forças da Natureza, como o vento, a chuva, o
fogo e os astros. A crença védica era a de que o cumprimento do Dharma só seria
possível com a ajuda desses deuses – daí a importância de se dirigir ritualmente a eles,
nos momentos e nos locais oportunos. Os védicos se serviam do movimento das
estrelas e planetas para determinar os momentos adequados de suas práticas, e por
essa razão dedicavam muito esforço à observação dos astros no céu. A astrologia
védica, originada dessas crenças, é praticada até hoje dentro do Hinduísmo, e tem
grande prestígio junto à comunidade hindu.
Há quem pense que o Rig Veda é uma espécie de enciclopédia de sabedoria, que
trataria de diversos assuntos de interesse comum, mas essa é uma visão equivocada.
Essa obra é, na verdade, uma coleção de hinos que se destinam primariamente para
acompanhar o ritual de sacrifício. A maior parte do conteúdo dos versos védicos é pura
louvação. Elogios a deuses e pedidos de benefícios para os oficiantes ou seus
protegidos. Os versos do Veda tratam apenas do que interessa ao ritual, até mesmo
quando narram acontecimentos que possam revelar algum fundamento histórico. Seu
objetivo é recitar mitos para acionar as forças naturais necessárias ao bom
desempenho dos sacerdotes com o ritual. Na verdade esses hinos são considerados
fórmulas sonoras sagradas, que têm o poder de ativar o ritual, a ponto de o hindu
acreditar que sem a recitação desses versos nenhum ritual poderia produzir efeito.
Esses versos foram compostos por muitos autores diferentes, todos eles vinculados a
alguma das mais importantes famílias de sábios védicos (gotras). Alguns hinos têm
mais do que um autor, e alguns autores compuseram diversos hinos. Sabemos da
diversidade desses autores porque eles são identificados nominalmente em textos
subsidiários do Rig Veda, chamados Anukramani. Um Anukramani traz uma lista em
que estão os nomes e famílias dos sábios compositores e se indica quais hinos e
versos são de sua autoria. Esse detalhe é importante porque cada família védica
produzia o ritual de uma maneira distinta das demais, e dava preferência a utilizar
mantras compostos pelos seus próprios membros.
O ritual era realizado com a finalidade de obter equilíbrio e prosperidade para os reis e
para a comunidade. No entanto, é possível perceber, pela leitura dos hinos védicos,
que eles também apontam para um sentido mais profundo, filosófico, que dará
sustentação para as práticas mais populares do Hinduísmo posterior, entre as quais se
destaca o Yoga.
O verso mais importante do Rig Veda, o Gayatri Mantra, que os brâhmanes ensinam
para os adolescentes na época de sua iniciação à vida adulta, pede ao Sol “noturno” (o
deus Savita, que é o Sol no período da noite, quando ele transita abaixo da linha do
horizonte) que impulsione a sua meditação (dhi). Essa era uma referência clara a uma
atitude própria do Yoga, que nessa época não havia ainda amadurecido como doutrina.
Outro hino bastante celebrado, o hino ao Purusha (o homem cósmico), dá o tom
para o que será a filosofia Samkhya, muito popular entre os shramanas – ascetas
renunciantes.
Dos rituais de sacrifício (yajña), o mais importante é o do Soma, no qual os caules
moles de uma planta, especialmente colhida à luz da Lua, são esmagados entre duas
lâminas de couro com a ajuda de algumas pedras. Durante o ritual os hinos védicos
são cantados continuamente pelos sacerdotes. Aos caules desfolhados são
acrescentados leite ou coalhada, e às vezes um pouco de grãos de cevada e de mel. O
líquido leitoso que se extrai desse trabalho é recolhido em um recipiente de madeira
(kumbha) e é vertido às colheradas no fogo ritual, como oferenda ao deus Indra. Esse
líquido é o Soma, a essência do reino vegetal, e se diz que a sua ingestão traz como
resultado a inspiração poética. Por isso os sacerdotes sempre reservavam uma
pequena quantidade para seu próprio consumo, com o objetivo de se converterem em
poetas (kavi, o que é um sinônimo para “sábio”).
Dentro do universo acadêmico se formou quase um consenso sobre “Soma” ser o
nome de uma planta em particular (e que hoje ninguém sabe dizer precisamente qual
é). Alguns pesquisadores acreditaram se tratar de alguma espécie vegetal com
propriedades alucinógenas – até mesmo cogumelos já foram cogitados, nas tentativas
de identificar o Soma. Mas os hinos védicos não atestam essas teses. O Soma não é
descrito como um tipo determinado de planta, mas sim uma essência que se pode
extrair de qualquer planta. Talvez o Soma seja um princípio ativo dos vegetais, que se
transfere para a beberagem ritual da mesma forma que, por exemplo, se transferem os
princípios homeopáticos para a água, ao fazer as diluições. As plantas mais adequadas
para se extrair o Soma são as que crescem nos vales mais elevados do Himalaia. O
texto védico também alega que a força que extrai o Soma das plantas é a recitação dos
versos sagrados, ou seja, o mantra. Isso torna ainda mais evidente que o Soma é um
princípio místico, e não uma substância material ou uma planta em particular.
Se há uma característica marcante na vida do cidadão védico, é a sua fé na eficácia
dos rituais de sacrifício. Esses rituais envolviam a matança de animais, às vezes em
grande número, que foram sendo reduzidas, e em alguns casos substituídas pela
mutilação de representações simbólicas desses mesmos animais, feitas com massa
comestível. O ritual era, no entanto imprescindível, como se fosse a linguagem através
da qual o indivíduo védico conversava com seus deuses. A teoria do ritualismo védico é
explicada em uma obra conhecida como Purva Mimamsa Sutra, de Jaimini, um
brâhmane do século III a.e.c., onde se alega que tudo aquilo que não diga respeito ao
ritual de sacrifício, na literatura védica, tem valor apenas figurativo. Ele documenta com
clareza, portanto, esse perfil do Dharma védico.
Dentro da Sociedade védica, os indivíduos que tinham sucesso no cumprimento das
obrigações rituais eram chamados “aryas”, ou seja, “nobres”. Por esse termo eram
designados, portanto, apenas os indivíduos que cumpriam o Dharma. Uma pessoa que
não atendesse às demandas de sacrifícios e ações ritualizadas era observada com
desprezo pelos demais. Esse conceito de nobreza se pautava pela atitude religiosa e
jamais pela posição social ou pela cor da pele, como os orientalistas do século XIX
quiseram acreditar.
Os versos do Rig Veda também retratam os embates de reis do passado, em que são
contrapostos aqueles que cumprem o Dharma e os que deixaram de fazê-lo. Os
primeiros são os nobres (aryas), que são retratados sempre favorecidos pelos deuses,
em razão de seu comportamento ético. O rei Sudas, por exemplo, enfrenta dez outros
reis, simultaneamente, mas é favorecido por uma grande inundação que afoga os
exércitos de seus adversários.
À maneira do mago Gandalf, da ficção britânica de Tolkien no “O Senhor dos Anéis”, os
sábios védicos acompanham e protegem os reis na batalha, embora desarmados e
com suas vestes brancas, na condição de conselheiros e promotores de fenômenos
mágicos que os protegem. Se as narrativas retratam com fidelidade os acontecimentos
que de fato se passaram na Índia védica, talvez jamais venhamos a saber, mas com
toda certeza um sacerdote habilidoso, naquela cultura, valia mais do que um exército
inteiro.

A Inspiração no Rio

“Hinduísmo” é o nome pelo qual os povos islâmicos identificaram o conjunto de culturas
que encontraram dentro do subcontinente indiano, quando aí chegaram, na primeira
metade do século VIII. Um nome estrangeiro, que deu à riqueza cultural daquela parte
do mundo uma designação apenas geográfica. A palavra “Hinduísmo” provém do nome
do rio Indo (em sânscrito “sindhus”), e foi utilizada para dar um nome para o território
que se estendia daquele rio para adiante (Hindustão), para os povos que lá viviam
(hindus) e para todas as culturas que ali existiam (Hinduísmo).
A denominação persistiu, e é utilizada ainda hoje, embora os indianos prefiram
identificar sua religião e sua cultura com palavra sânscrita “Dharma”. É sob essa
designação que se inicia a história do Hinduísmo, e é também com ela que o hindu até
hoje identifica o conjunto de crenças e práticas que dão a ele uma identidade dentro da
diversidade das civilizações. Sua convicção de que sua cultura tem a antiguidade do
próprio Universo, e que perdurará por toda a eternidade, lhe dá o prazer de designar
sua religião “Sanatana Dharma” – o Dharma Eterno.
A palavra “dharma”, proveniente de uma raiz verbal que significa “segurar”, pode ser
traduzida como “aquilo que é firme”, e freqüentemente designa aquelas condições com
as quais nascemos, e que oferecem os recursos vocacionais que deveríamos seguir
para obter o sucesso e a felicidade na vida. Por essa razão, ou seja, por indicar algo
que deveria ser realizado na prática, a palavra têm sido muitas vezes traduzida
simplesmente como “lei”.
O Dharma hindu se caracteriza por uma extensa literatura, cuja origem é atribuída aos
deuses ou a homens sábios inspirados por um intenso fervor poético. Infelizmente não
há restos arqueológicos que nos dêem indicações claras sobre as fases iniciais de
formação dessa cultura. Então, tudo o que temos para construir a parte inicial da
história do Hinduísmo é uma literatura original imensa e uma certa quantidade de
especulações baseadas na maneira como cada pesquisador interpreta o conteúdo
dessa literatura. Os elementos mais antigos dessa literatura são 1.028 hinos
compostos para acompanhar os rituais de sacrifício aos deuses. Organizados em uma
coleção de dez volumes (mandalas), são chamados coletivamente “Veda dos versos”
(Rig Veda), onde “veda” significa “conhecimento”. Trata-se, no entanto, de um
conhecimento revelado por Deus ou pelos nossos ancestrais, e não se confunde com o
conhecimento vulgar.
A fase formadora do Hinduísmo vem de uma data ainda indeterminada - que varia
entre 1.500 e 6.500 anos antes de nossa Era - em razão das diversas teorias que a
disputam, e segue até aproximadamente o século III a.e.c.. Podemos chamar esse
período de fase “védica” do Hinduísmo, quando sua sustentação é promovida pelos
principais sacerdotes védicos, os brahmanes. Os três a quatro séculos que encerram
essa fase assistem à cristalização da ordenação social védica em um sistema de
castas, no qual as famílias dos sacerdotes ocupam a posição mais importante da
sociedade. Identificada como o Dharma Védico, em seus primeiros momentos, essa
fase inicial do Hinduísmo termina como uma afirmação da ascendência dos sacerdotes
sobre o resto da Sociedade, e por isso alguns acadêmicos deram ao final da fase
védica o rótulo “Brahmanismo”.
Nos últimos séculos dessa fase védica, há o crescimento de uma resistência intelectual
à inteligência brahmânica. Uma categoria de eruditos passa a discutir as bases do
Dharma hindu propondo que a realização dos rituais de sacrifício e o estudo do Veda
não são imprescindíveis para que um indivíduo encontre a felicidade. Seu argumento
se fundamenta na afirmação de que cada indivíduo tem dentro de si a presença divina,
e que, por essa razão, sua iluminação depende apenas de uma decisão sua e de seu
esforço pessoal, apenas. Esses eruditos são, em geral, ascetas renunciantes que
desfrutam de grande prestígio junto à população em geral pois são vistos como
homens santos – e desafiam abertamente a autoridade da casta sacerdotal.
Esses livre-pensadores, que em geral surgem entre os membros das castas dos
guerreiros (kshatriyas) ou dos artífices urbanos (vaishyas), são chamados “shramanas”
(“praticantes”) e sua pregação liberal é conhecida como Shramanismo. Não tardaria
muito para que o Dharma ficasse dividido entre a interpretação brahmânica, bastante
elitista, de um lado, e a interpretação shramânica, que admitia o acesso à iluminação a
qualquer pessoa, de qualquer condição social. Pensadores brahmânicos e
shramânicos passam a se enfrentar em um debate que marca o final da fase védica do
Hinduísmo.
Esse debate toma de assalto o Norte da Índia, entre os séculos VI e III a.e.c. e
acontece entre intelectuais viajantes (parivrajakas), que discutem entre si doutrinas
variadas até que os argumentos de um deles prevaleça sobre os do outro, que então
declara publicamente tomar como mestre aquele que até aquele momento era seu
adversário. Desses debates saíram composições cuja finalidade era a de consolidar em
um sistema as opiniões vencedoras dos embates intelectuais dos parivrajakas. A
doutrina do Yoga é um exemplo de manifestação cultural decorrente desse tipo de
debates.
Enquanto o debate se desenvolve, alguns shramanas encontram seu caminho por
outras vias que escapam à capacidade brahmânica de manter o debate na esfera das
escrituras. Entre esses shramanas se destacam Vardhamana Mahavira – o reformador
do Jainismo – e Siddharta Gautama – o Buda. Em especial a mensagem do Budismo
teve um forte apelo popular se tornou a linha de frente no debate entre o Shramanismo
e o Brahmanismo.
Esse embate inicia a segunda fase da história do Hinduísmo, que segue
aproximadamente da época do surgimento do Budismo até o início do século IX, com a
reforma promovida por Shankara Acharya. Nesta segunda fase, o cenário hindu está
tomado pelo Budismo, que ainda não é visto como uma religião distinta, mas como
uma visão shramânica do mesmo Dharma hindu. Nesse período a revelação védica
caminha para o esquecimento total, sobretudo na região norte do subcontinente indiano.
O Budismo se torna a religião dominante dos reis e da plebe, indistintamente.
A figura emblemática que abre esse período é o rei Ashoka Maurya, um dos mais
celebrados heróis da Índia Antiga, que depois de ter iniciado sua vida pública com
violência, e após derrotar com brutalidade o rei budista de Kalinga (um reino na região
da costa atual de Orissa), se arrependeu de seus atos. Converteu-se então ao Budismo
e realizou um dos mais extraordinários governos que a Índia já testemunhou.
Emblematicamente se afirma que sua mãe era uma rainha de condição inferior
chamada “Dharma”.
O Hinduísmo védico, muito enfraquecido, encontra sua sobrevivência nesse período na
cultura popular, sobretudo na literatura das crônicas e dos épicos, que pelas mãos
habilidosas dos brâmanes encontram seu formato final. A bhakti, o sentimento
devocional do povo, é a força que sustenta a fé nas escrituras védicas durante esse
período. Mas isso ocorre praticamente apenas na metade Sul do subcontinente (o
chamado Decão), onde a erudição brahmânica é preservada na sua integridade védica,
mas também se mescla com tradições familiares locais, dando origem a uma literatura
diferenciada do corpo védico. Essa literatura se torna conhecida como Agamana
(“chegada”). Os Agamas, que são as composições desse tipo, serão logo identificadas
com obras similares produzidas no Hindustão, ao norte.
As religiões populares sempre apreciaram muito as informações privilegiadas, obtidas
por “revelação”. O Veda era um conjunto de revelações bastante prestigiado na fase
inicial do Hinduísmo, mas que agora estava prejudicado pela crítica shramânica. O
enfraquecimento da literatura védica no Norte da Índia criou a demanda por uma nova
série de revelações, que passou a surgir no seio da cultura budista, embora com um
caráter distinto das composições canônicas do próprio Budismo. Essas composições
que são oriundas de tradições secretas mantidas por famílias de artífices por séculos
ou milênios a fio, serão conhecidas coletivamente pelo nome Tantra. Apesar da
designação comum, o tantrismo produz obras literárias místicas bastante diversificadas,
todas elas, no entanto, entendidas como dotadas do “status” de revelações. Os Tantras
do norte e os Agamas do sul, logo são vistos como manifestações de uma mesma
onda de revelações, adequadas à Era das Trevas (Kali Yuga), e são definidos
coletivamente como Tantra.
Ao mesmo tempo que o Tantra dava ao povo uma nova literatura revelada, uma
enxurrada de seitas devocionais trazia à população não-erudita novas opções de fé,
não mais restritas a uma única escritura – já que a tradição védica (que dava unidade
ao panteão) havia desmoronado diante dos argumentos dos shramanas. Dessa
maneira surgem seitas de seguidores dos deuses Ganesha, Vishnu, Shiva, Surya e da
deusa Durga ou Shakti.
Ao longo dessa fase shramânica do Hinduísmo, uma linhagem de especialistas na
tradição védica, chamados mimamsakas, desenvolvia um projeto para devolver a
ascendência da tradição védica ao Hinduísmo. O expoente máximo dessa linhagem foi
um jovem brahmane, pertencente a uma seita Shaiva (de seguidores de Shiva),
conhecido como Adi Shankara Acharya. Ele elaborou uma proposta que envolvia a
integração de todas as seitas em uma só, dedicada ao deus único, Brahma, além de
concentrar a autoridade das seitas nos ascetas renunciantes (que tinham grande
prestígio popular). Shankara fundou dez ordens monásticas, com as quais levou a
mensagem que integrava a visão shramânica dentro do cenário védico e restaurava a
força do Hinduísmo como uma unidade cultural.
Shankara também consolidou o ponto de vista dos mimamsakas num sistema filosófico,
chamado Vedanta, que teve pouco impacto entre os intelectuais, pois foi logo
contestado pela escola shaiva da Cachemira. No entanto sua reforma do Hinduísmo
ganhou a adesão popular e em pouco tempo se tornou a nova orientação que integrava
o shramanismo, o que restara do brahmanismo e a bhakti numa nova unidade, que
abre a terceira fase da história do Hinduísmo – o Hinduísmo moderno.
A partir de Shankara, e como prova da aceitação de sua reforma, as obras do Tantra
passam a declarar que o estudo dos Vedas é importante também para o praticante
tântrico, assim como a literatura de tradição védica (como as Upanishadas posteriores
à época de Shankara, por exemplo) passam a discorrer sobre assuntos que até então
eram abordados apenas nos tantras ou na literatura shramânica. Isso demonstra que o
Hinduísmo havia conseguido alcançar a reunificação buscada pelos mimamsakas,
embora preservando a riqueza própria de sua diversidade.
Um outro fato caracteriza essa terceira fase do Hinduísmo, e foi um fator decisivo para
o sucesso da reforma de Shankara. A Índia passou a ser invadida, lentamente, pelos
povos islâmicos, poucas décadas antes do nascimento de Shankara. Certamente a
ameaça de um invasor alheio e hostil às tradições hindus influenciou em muito a
aceitação muito rápida das propostas de reforma. Antigos adversários da arena
intelectual sentiam a necessidade da união para fazer frente ao perigo que afetava a
sobrevivência de uma cultura que sempre se sentira protegida pelos oceanos e pelas
montanhas – e que havia se desenvolvido em relativo isolamento.
A presença cada vez maior do islamismo, seguido pelas incursões européias a partir do
século XVI, afastou a Índia de sua própria cultura por cerca de mil anos, até o século
XIX, quando alguns grupos de intelectuais politizados procuravam restaurar o
Brahmanismo e reafirmar a ascendência social da casta brahmânica. Esses
movimentos (Arya Samaj e Brahma Samaj) acabaram evoluindo para partidos políticos
e levaram ao desenvolvimento de posições radicais dentro do Hinduísmo, que pregam
o uso da violência e do sacrifício pessoal e que evocam teses estranhas à própria
tradição hindu (Marxismo, por exemplo).
Esse curto-circuito entre política e religião, que tem produzido regimes de terror em
algumas nações, na história recente, é a grande ameaça que ronda o Hinduísmo ao
longo dos últimos duzentos anos.


Carlos Eduardo Gonzales Barbosa
in “História Viva” edição especial “Grandes Religiões – 5 – Hinduísmo”

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